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domingo, 12 de abril de 2015

Sampaio usou truque autoritário na CPI

 

Fotos: divulgação/Edição 247:

Na hora mais sombria da ditadura militar, quando os cafajestes mais brutos imaginavam que podiam agir à solta a partir de instintos mais baixos, acreditando que ninguém ficaria vivo para reconstituir sua brutalidade, pois tinham a ilusão arrogante de que o fim do mundo era também o fim da História, costumava-se jogar ratos, cobras e outros animais em celas de prisioneiros.

Ratos costumavam ser introduzidos na vagina das mulheres, no ânus dos homens. Era assim. Na cela em que militantes eram tratados como lixo e julgados como criminosos, a hoje colunista Miriam Leitão foi obrigada a enfrentar cobras.

Os ratos — pouco importa a espécie precisa de roedores — que foram soltos no plenário da CPI no início do depoimento de João Vaccari saíram deste universo vergonhoso da política que é feita para produzir sangue, dor, crueldade. O país não está sob uma ditadura mas não faltam seus nostálgicos, cada vez mais ativos, descarados. Gritam, bufam. Planejam.

Não é de estranhar que, nesta situação, tenham surgido personagens arrogantes de um mundo patético, farsantes em sua própria farsa.

Ocorreram atos baixos por parte do clero mais baixo e mais raivoso, interessado em acumular minutos de fama perante as câmaras de TV num campeonato de selvageria e falta de respeito.

O espetáculo contou, também, com a participação de um dos integrantes da elite da Câmara, que foi assessor da campanha de Aécio Neves e hoje é líder da bancada tucana.

Tirando e colocando seus óculos, em gestos mecânicos, repetitivos, o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) reproduziu um gestual clássico da TV brasileira em sua época mais deprimente, o autoritarismo da fase Médici, do Brasil “Ame-o ou Deixe-o”.

Na época, modos arrogantes davam prestígio. Eram prova de educação e intimidade com o Poder.
Os ratos chegavam a ser glorificados — da mesma forma que, na semana passada, os jornais e a TV faziam questão de mostrar demoradamente, em varias situações, a imagem dos roedores da CPI, sem demonstrar a menor indignação diante de uma provocação vergonhosa.

Nos tempos de ditadura, ninguém iria questionar uma ideia registrada por Hannah Arendt. Num estudo sobre o ambiente político que favorece o nascimento de regimes totalitários, ela ensinou que ”o mal, em nosso tempo, exerce uma atração mórbida.”

Escrevendo sobre o mais pavoroso período da história recente da humanidade, simbolizado pelo nazismo, Hannah Arendt registra o fato “muito perturbador”, de o regime totalitário, malgrado seu caráter evidentemente criminoso, contar com apoio das massas.”

Era isso (“o apoio das massas”) que buscava o apresentador Flávio Cavalcanti, criador do “tira-bota” óculos que o líder do PSDB iria copiar três décadas depois, levando, para uma CPI que alega investigar a maior empresa brasileira, uma técnica de manipular audiências própria de programas de calouros.

O “Programa Flávio Cavalcanti” tinha uma mensagem social desprezível. Sua finalidade era humilhar quem não podia se defender. Candidatos — ou supostos candidatos, pois uma lenda diz que muitos eram recrutados apenas para alugar a própria humilhação perante as câmaras — a uma vaga na cena musical brasileira eram agredidos, xingados, destratados, despachados aos gritos como vermes humanos. Eram devidamente punidos pelo atrevimento de não reconhecer seu devido lugar.

Naquele programa dos anos 1970, estávamos falando de show biz, de um certo teatro, um espetáculo assumido, apesar de horroroso. Era um programa para a noite de domingo. A vida dura começava no dia seguinte.

Naquele tempo — é bom perguntar à turma da terceirização o que ela acha sobre isso — o descanso dominical ainda não fora abolido e os pais, mães, irmãos, avós e agregados tinham um dia para se encontrar e se divertir em casa. Bons tempos, não?

Foi inaceitável, na tarde dos ratos da CPI, que se quisesse manter o clima Flávio Cavalcanti, levando a sério o que era puro teatro, ignorando fatos importantes e verdadeiros. Mas é compreensível — pois os fatos não ajudam. Daí, o passeio dos roedores.

Pela mesma razão, o tira-bota dos óculos ajuda a esconder a substância das coisas, numa semana marcada por notícias complicadas para a Lava Jato, que comprometem os dois delatores principais, Alberto Yousseff e Paulo Roberto da Costa.

O trabalho de Alberto Yousseff é questionado, hoje, por Gilson Dipp, ministro aposentado que é uma das principais autoridades em delação premiada no país, e coordenou os debates no Senado sobre a reforma do Código Penal. Dipp assina um parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal onde questiona o valor legal da colaboração de Alberto Yousseff nas investigações. Num texto contundente, irretocável tecnicamente, ele afirma que a delação de Yousseff “mostra-se imprestável por ausência de requisito objetivo — a credibilidade do colaborador — e requisito formal — omissão de informações importantes no termo do acordo”, tornando “imprestáveis” todos os atos e provas que vieram a partir do que declarou Youssef. Não é tudo.

Paulo Roberto Costa, o delator-mor, corrupto confesso, decidiu retificar seu depoimento. Não fez uma correção de data, nem de endereço. Disse, simplesmente, que os preços das obras contratadas pela Petrobrás não eram superfaturados. Vamos prestar atenção: aquele que até agora era a voz da verdade no escândalo, que conhecia a empresa e seus meandros por dentro, afirma que os preços não eram fabricados para roubar a empresa e pagar propina. Não. Eram preços corretos. Se isso é verdade — e até agora nunca se alegou que sua palavra pudesse se colocada em dúvida, certo? — é preciso reconhecer que a denúncia fica sem chão. Se o célebre “assalto” à Petrobras não incluia tirar dinheiro da Petrobras, perguntas-se “que assalto é este?” Onde foi parar a “corrupção institucionalizada” da empresa, cabe questionar, numa atitude que serve como advertência para quem não quer fazer papel de bobo como os calouros no programa de Flávio Cavalcanti.

Em seu depoimento, iniciado logo depois da aparição dos ratos, João Vaccari lembrou, com auxílio de gráficos, números do TSE que mostram que, entre 2007 e 2013, as contribuições financeiras das grandes empreiteiras investigadas na Lava Jato atingiram o mesmo volume para o PT, o PSDB, o PMDB. Ou seja. Se há alguma preocupação com a seriedade, a legalidade, a honestidade dessas transações, era preciso refletir: por que os recursos para o PT tem, previamente, uma origem criminosa e aqueles destinados ao PSDB e ao PMDB não despertam a menor curiosidade, possuem, também previamente, um atestado de bons antecedentes? Nem precisa responder, certo?

Omissões e falhas na investigação não deveriam surpreender. São fatos naturais no trabalho de apuração de toda denúncia criminosa. Só atrapalham o ambiente de circo.

Entre 2005 e 2013, a AP 470 acusou 40 cidadãos e, no final, após oito anos de inferno, 12 foram absolvidos por falta de provas. Nessa fantástica margem de erro de 30%, havia um ministro, Luiz Gushiken, quatro deputados, sem falar em Duda Mendonça, um dos principais publicitários do país. Entre os condenados por corrupção, encontrava-se José Dirceu, alvo da teoria do Domínio do Fato, e José Genoíno, cujo único bem patrimonial consiste num sobrado comprado à prestações na Caixa.

No artigo “A força da palavra repressiva,” publicado na edição de abril do Le Monde Diplomatique, o advogado Anderson Lobo da Fonseca apresenta dados sobre a população carcerária do país inteiro e mostram — curiosamente — uma margem de erro semelhante. Um certo nível de truculência também. Nada menos que 37% da população carcerária — a quarta do mundo — é formada por pessoas detidas, que não tiveram a oportunidade de um julgamento. Estão em prisão preventiva, com base no mesmo argumento que leva Sérgio Moro, da Lava Jato, a manter mais de duas dezenas de executivos, políticos e empresários encarcerados em Curitiba: ameaça a ordem pública.

O problema é que, quando chegam ao fim do processo, 40% dos presos acabam absolvidos ou recebem penas inferiores ao tempo de detenção. Citando uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP sobre o tráfico de drogas, uma das principais causas de encarceramento no país, Fonseca lembra que em 74% dos casos a prisão foi apoiada exclusivamente no testemunho de policiais. Mostra, também segundo o NEV, que em 48% dos casos a droga nem sequer se encontrava com o acusado “e que o vínculo foi estabelecido unicamente pelos policiais envolvidos.” Lembrando que caberia ao Judiciário permitir que os acusados questionassem a veracidade das denúncias que enfrentam, o advogado conclui: “em um cenário generalizado de POUCAS PROVAS (as maiúsculas são minhas), muitas vezes o que fica é a palavra do policial contra a do acusado.” A partir de uma pesquisa com apoio da Pastoral Carcerária, descobre-se que o Ministério Público, que deveria “exibir a produção de provas mais robustas antes de levar os casos a Justiça,” agrava o enquadramento de 30% dos casos no momento da denúncia.

Esse desempenho deveria inspirar uma postura de cautela contra a possibilidade de erros e injustiças. A frase (“ninguém é inocente até que se prove o contrário”) não é um adorno sem valor, mas um princípio a ser respeitado e defendido, especialmente em horas difíceis.
Mas essa hipótese é ruim para os ratos.

Impede o espetáculo, a caça fácil de votos com holofotes garantidos para os leões da moralidade, o bota-tira óculos. Essencia dos valores democráticos, é um obstáculo concreto ao fascismo.

Um dos mais enigmáticos episódios do início do século XX consiste na ascensão do movimento fascista na Italia.

Em apenas três anos, Benito Mussolini deixou a condição de candidato derrotado a uma cadeira de deputado — teve apenas 5000 votos — para ser encarregado pelo Rei Vitório Emanoel de formar um novo governo. Depois de liderar um movimento de massas que promovia ataques terroristas contra organizações operárias, fechava jornais, atacava sindicatos e forçava renúncias de prefeitos socialistas com ameaças de morte, Mussolini construiu uma ditadura que durou 20 anos.

Durante sua escalada rumo ao poder, o gabinete ministerial, de base parlamentar, formado por partidos liberais e lideranças católicas, chegou a debater uma proposta de criar leis duras e específicas contra crimes dessa natureza, que incluíam o recolhimento de armas, mas a maioria dos ministros rejeitou o projeto. Não gostavam do fascismo, mas não queriam confrontar-se com um movimento que lhe prestava um favor inestimável.

Os homens de negócio davam respaldo a Mussolini por uma razão elementar: “as forças organizativas e as afirmações do fascismo criaram um clima de resistência às teorias bolcheviques,” registrou Ettore Conti, um dos grandes empresários do país.

Para o historiador Emilio Gentile, autor de “El fascismo y la marcha sobre Roma”, a razão desse comportamento omisso diante de uma ameaça evidente a democracia é fácil de entender: “a favor da ascensão do fascismo contribuía a atitude de todos os principais expoentes da classe dirigente, isto é, os ex-chefes de gabinete e o chefe do Exército: todos excluíam o uso da força legítima do Estado para combater e reprimir a força ilegal do fascismo, temendo que a repressão devolvesse vigor aos revolucionários sociocomunistas.”

A questão era essa, portanto. Auto-nomeado “vento purificador” da política italiana, Mussolini fez da destruição do Partido Socialista seu grande objetivo estratégico.

Capaz de eleger a principal bancada do parlamento italiano em 1919, o PS não dirigia a Italia mas governava cidades e regiões inteiras do país, onde o empresariado era obrigado a conviver com conquistas e melhorias impensáveis até pouco antes. Em Turim, formaram-se conselhos de fábrica que impunham a coe-gestão das empresas. Mussolini combatia o PS e desprezava as regras democráticas dizendo que a Câmara lhe provocava “asco, muito asco.”

Um de seus aliados afirmou que “é hora de terminar com as patranhas propagadas pelo governo e com as medidas adotadas por essa canalha, massa de porcos, de corruptos, que pensam que nos governam.”

Na CPI, em 2015, foi possível entender as semelhanças entre os dois países em momentos diferentes de sua história.

A cena ocorreu quando, um pouco antes de retirar-se, o deputado Carlos Sampaio disse a João Vaccari: “O senhor tem tudo para ser preso e o PT para ser extinto.”

Era uma frase que nenhum integrante do baixo clero poderia pronunciar.

http://www.brasil247.com/pt/247/poder/176855/PML-Sampaio-usou-truque-autoritário-na-CPI.htm

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